Nada é tão ruim que não possa piorar

Eu comentei no artigo anterior que finalmente assinei o HBO Max, não foi? Bom, na noite passada resolvi que queria dar um pouco de risada e fui ver, de todos os filmes, Monster Hunter.

Eu sei, eu sei. Embora hoje tenhamos casos de adaptações de videogames para o cinema relativamente bem recebidas, como Detetive Pikachu e Sonic, a resposta a Monster Hunter foi a decepção usual para este tipo de “transição”. Só que, como fã dos games, eu queria ver o tamanho do estrago assim mesmo.

Lógico que, por tudo que li e ouvi, eu esperava o pior, e em todo e qualquer sentido. Não tinha ilusões de que veria nada muito fiel ao material original, nem que fosse sequer um filme divertido de “ação pipoca”. Mesmo assim, eu não estava preparado para aquele que seria o pior filme que já assisti na vida.


Para explicar isso, eu posso tomar duas direções, e vou começar com a mais simples e direta para quem estiver com preguiça de ler muito. É o seguinte. Imagine que você é uma criança de uns 10 anos e quer, sei lá, um boneco do Homem-Aranha de presente. Seria ótimo se fosse um bem bacana, cheio de articulações e apetrechos e tal, mas pô, qualquer bonequinho razoável já vai te deixar feliz.

Aí chega o Natal e o que você ganha é isso aqui:

Você, adulto, pode até dar risada da situação, mas pensa bem. Não tem como algo ser mais frustrante que isso. Mesmo com 10 anos, você não vai usar esse telefone de brinquedo de jeito algum. Você seria o motivo de piada da escola. É evidente que foi comprado em loja de produto pirata a tipo 10 contos. Você iria se perguntar se quem te deu o presente te odeia, ou quis tirar uma com a sua cara.

Então, esse é o filme de Monster Hunter… Se esse telefone-“Homem-Aranha” tivesse custado milhões para fabricar.


“Ah, não exagera, Sooner. Eu vi os trailers e o filme não é feio assim”. Cara, não é de visual apenas que eu estou falando. É da completa desconexão entre as coisas. É do fato desse aí não ser o Homem-Aranha e sim um quase irreconhecível Demolidor – pior ainda, um sem graça alguma. Não funciona nem como material de sátira ou piada, tipo o boneco do El Supermano, o Super-Homem versão mexicana. E ainda por cima nem boneco é, só uma droga de um telefone de brinquedo.

Essa é a segunda – e mais séria – direção a tomar quando falo de Monster Hunter: o filme é o absoluto fundo do poço sob qualquer ângulo que se olhe. Qualquer um.

Da perspectiva mais de fã dos jogos, o filme é um insulto. Percebam que não estou sendo purista aqui, não é uma questão de querer fidelidade absoluta à fonte. Os games nem sequer têm muita narrativa, e todo o lore acumulado da série em 16 anos (até o lançamento do filme) mal deve encher um livro de 50 páginas. Ainda por cima, a maior parte desse lore é sobre os monstros – o mundo em si não tem quase nenhum background. Por mim, poderiam usar de toda liberdade criativa que quisessem.

Ainda assim, se você vai fazer um boneco do Homem-Aranha, você tem que fazer um boneco e ele tem que ser do Homem-Aranha. Já Monster Hunter é um não-filme e uma não-adaptação.

Mesmo que você não espere nada, os trailers do filme podem enganar pela incrível computação gráfica dos monstros. De fato, eles estão maravilhosos. Só que o filme ainda tem todo o resto a retratar, e aí eu preciso usar capturas de tela para demonstrar o quanto a direção de arte da “obra” é um troço pobríssimo, equivalente a reduzir o Demolidor de Frank Miller e David Mazzucchelli ao “Demolidor” de telefone de brinquedo acima.

Essas são capturas de Monster Hunter: World, o jogo que serviu de maior inspiração para o filme, seguidas de telas de áreas correspondentes no filme:

E nós nem saímos da parte visual ainda. Oh, boy.

Quase nada sobrevive à “adaptação” de Paul W. S. Anderson. Nerscyllas aparecem em quantidades impossíveis e acabam virando, na prática, hordas de monstros de Starship Troopers. O protagonista masculino caçador de Tony Jaa é retratado durante mais da metade do filme como um indígena estereotipado bobalhão que trocaria miçanga por espelhinho. O Rathalos de repente tem uma fraqueza “quando está para soltar fogo”, não em partes específicas para determinados tipos de dano. Resumindo, absolutamente nada está moderadamente intacto que seja.

Outra coisa inaceitável: a série de jogos com algumas das melhores trilhas orquestradas do meio ganha em seu filme… um bando de faixas dignas de um Jean-Michel Jarre, aquele rococó tecnoprogressivo sem inspiração alguma. Confiram por conta própria. Isso até poderia funcionar em outro lugar, como ficção científica distópica, mas obviamente tem zero a ver com Monster Hunter e não cabe bem nem sequer no próprio filme. Eu nem vou apelar para “Proof of a Hero” para comparar, o tema principal de World já basta:

Mas vamos deixar essas coisas todas de fã de lado um pouquinho… Porque ainda assim fica pior.

O maior pecado de Monster Hunter é que ele substitui tudo por nada – isto é, coloca no lugar uma maçaroca de coisas nem um pouco interessantes. É o tipo de filme que não só irrita fãs, como faz todas as outras pessoas se perguntarem qual é o diablos da graça do jogo a ponto dele receber uma adaptação, afinal. E não dá para culpá-las: todos os aspectos de Monster Hunter enquanto filme descaracterizam a jogabilidade das maneiras mais insípidas possíveis.

Se você fosse imaginar como é o jogo a partir dessa “obra”, concluiria que os caçadores passam 80% do tempo andando, 10% em lutas corpo-a-corpo entre si e 5% golpeando monstros gigantes aleatoriamente com espadinhas duplas. Os outros 5% deveriam ser o pouco que aparece das outras opções de armas, como o Espadão ou o Arco, mas mesmo esses nunca são mostrados em sua verdadeira glória, sem 5% sequer dos golpes únicos que os caracterizam no jogo.

Isso tudo é consequência da visão pouquíssimo fantasiosa que o diretor parece ter do material original. É como se ele tivesse visto as piruetas com o Arco no jogo, mas decidido que aquilo era “Legolas/Senhor dos Anéis demais” e que “não caberia bem” no filme, que precisaria ser mais “pé no chão”. Se você for reparar, isso também vale para as capturas que incluí acima. Essa é a cara de Monster Hunter, o filme: jogue fora toda e qualquer diversão e fantasia (exceto os monstros) que poderia transformá-lo em pelo menos um filmezinho de ação pipoca empolgante, e o resultado final é esse aí.

Vamos então desconsiderar tudo isso acima e esquecer que é Monster Hunter. Digamos que você tente assistir a essa trolha como se fosse uma espécie de filme de kaiju, um Godzilla pós-moderno. Afinal, resolveram transformar a coisa toda em um isekai, certo? Aquele subgênero ficcional japonês em que gente de um mundo – no caso, soldados do nosso – é transportada a outro completamente diferente?

Pois é… Mesmo assim não funciona. Nem um pouquinho.

A primeira hora do filme é arrastadíssima. O que realmente acontece em termos de avanço narrativo poderia ter sido condensado em 20 minutos, no máximo – e mesmo assim não seria lá muito interessante. Para piorar, a meia hora final é jogada de qualquer jeito, com saltos narrativos bizarros apenas para tentar dar alguma coerência à coisa – a ponto do Almirante falar um inglês perfeito simplesmente porque “estudou bastante”, mesmo sendo do outro mundo e tendo apenas o mero contato breve com alguns outros viajantes anteriores como “fonte de consulta linguística”.

Esse é um dos conflitantes tons da primeira hora inteira

Boa parte desse arrasto e bagunça é porque a cinematografia em geral não tem cara alguma. É um verdadeiro bumba-meu-boi estilístico. Numa hora, o filme abusa dos panoramas abertos e longos no cenário de deserto; na outra, resolve fazer uma série de cortes abruptos estilo clipe da MTV dos anos 90. Em um momento, tenta parecer intimista e “fofo” com dois protagonistas de mundos diferentes tentando se entender; em outro, resolve dar jump scare do nada, como se fosse Resident Evil. Ah, e por algum motivo, o filme tem umas quatro cenas distintas de gente sendo jogada para lá e para cá dentro de um veículo em câmera lenta.

Nenhuma das atuações é sequer aceitável, nem mesmo dos dois protagonistas principais. As cenas de ação ou são confusas de acompanhar pelos já citados cortes abruptos, ou se arrastam muito mais do que deveriam (a luta entre a patrulheira e o caçador é o melhor exemplo). Mesmo as aparições dos monstros são subaproveitadas; se você assistiu aos trailers, já viu quase tudo que precisava deles. A única exceção é o Rathalos quando ele vem para o nosso mundo – e não chore “spoiler!!!”, vai me dizer que nem desconfiou que isso aconteceria? Faça o favor, era óbvio.

O filme já tinha problemas demais a resolver vindos do material original e fez zero esforço para lidar realmente com eles. Por exemplo, nenhum dos personagens tem nome próprio comum no jogo; eles são chamados pelo seu papel naquela sociedade, como “A Assistente”, “O Almirante” ou “Fulano da Quinta [Frota]”. Como isso é tratado em 1 hora e 33 minutos? Deram nomes próprios a eles? Usaram os tais títulos descritivos mesmo? Nem uma coisa, nem outra: tirando os soldados do nosso mundo, ninguém é referido por nome algum, nunca. Sério. Nem mesmo o Almirante falando em inglês perfeito. Até o primeiro nome da patrulheira protagonista, Nathalie, só aparece no minutos finais na dog tag dela.

Só essa galera superoriginal é chamada por algum nome no filme. Os personagens do jogo? Nah, pra quê?

E isso resume tudo errado com o filme: mesmo que você sinta qualquer conexão ou empatia com um personagem dessa “obra” – vai saber, existe maluco pra tudo – você não teria nem um nome para usar ao se referir a ele. Se não o conhecesse previamente do jogo, você teria que usar o nome do ator/atriz em questão ou ir de “aquele(a) maluco(a) que faz isso e aquilo” mesmo. O filme não acerta nem o básico do básico para cativar, é impressionante.

A coisa toda é tão ruim, tão descabida, tão mal ajambrada que nem dá mais para dizer que os monstros se salvam. Não, não se salvam, e sabem por quê? Porque o resto do filme é um buraco negro que engole qualquer 1% de bom que poderia ter sobrevivido. Eu posso até lembrar agora da risadinha que dei com todo o lance do “chocolate”, por exemplo, mas em dois dias já esquecerei desse detalhe, sem dúvida.

Em outras palavras: se essa fosse uma resenha formal com nota de 1 a 10 para um site profissional, eu insistiria em -9 com meu editor – e pediria demissão do emprego se ele não me permitisse. Tá ok, isso foi hipérbole, mas eu realmente insistiria bastante em pelo menos dar um zero.

A única salvação que Monster Hunter, o filme, teria era se abraçasse no geral a atrocidade de filme Z que fizeram com o Chefe Miauscular. A representação dele é tão bizarra que acaba virando uma espécie de Sanic… Mas, ao mesmo tempo, o fato de que esse Chefe nem mesmo virou fonte de meme demonstra o quanto o “filme” foi um não-acontecimento. É tão, tão, TÃO ruim que nem os trolls querem zoá-lo.

E o pior é que essa trolha ainda termina com um gancho para uma sequência, acreditem se quiserem. Agora imaginem o “telefone do Homem-Demolidor” ganhando uma linha de brinquedos própria. Eu duvido que o “criador” daquela coisa tenha tido a menor pretensão disso… Só mesmo no cinema alguém chegaria a esse desvario, e mesmo assim não são muitos. Por sorte, Monster Hunter deu prejuízo e, se Gog permitir, Paul W. S. Anderson jamais tocará na franquia de novo. Para que demônio eu posso sacrificar minha alma para garantir isso?

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