Marta morreu, e muito se perdeu

Eu ando em uma fase bastante nostálgica-revisionista nos últimos dois meses em que desapareci deste blog, conforme sugerido no último artigo publicado. Desde então, eu mergulhei em alguns jogos de terror e em Silent Hill em particular. A essa altura, já reexperimentei todas as diferentes reinterpretações da primeira história – a original, Shattered Memories e o filme – e o segundo jogo, e estou no meio do terceiro. A intenção é passar pela série inteira de novo agora que estou mais velho e mais capaz de notar algumas coisas menos óbvias em cada caso.

Isso só reforçou o quanto ainda considero Silent Hill a melhor série do gênero terror em games, com folga. Até quase parei minha jornada ao passado no meio do segundo jogo para escrever sobre essa preferência aqui, mas as coisas acabaram evoluindo de outro jeito. Por mais que eu goste de uma série, depois de quatro experiências completas relacionadas, é difícil não querer mudar de ares um pouquinho que seja.

Parte disso está sendo suprida indo na direção completamente oposta, com jogos de tiro mais pura-diversão-caótica como Far Cry 6 e Agents of Mayhem, mas o terror psicológico não sai tão fácil da sua cabeça… E, por algum motivo que não sei explicar, resolvi instalar e finalmente jogar o recente Martha is Dead, que havia comprado em promoção faz um tempinho. No fim das contas, o joguei inteiro de uma tacada só, varando noite por cerca de 7 horas seguidas.

O que isso me mostrou é que minha impressão inicial das rejogadas de Silent Hill estavam corretas: não há a menor chance de um jogo de terror psicológico desse tipo gerar o mesmo impacto no “inconsciente coletivo” dos gamers em geral de novo agora. Não digo isso porque o trabalho do dito “Team Silent” seja insuperável – embora imagine que nunca será reproduzido da mesma forma de novo – e sim porque o público, a crítica e o mundo atual não são mais os mesmos. Simplesmente não há espaço para esse tipo de abordagem profunda ser popular de verdade de novo, não num futuro próximo.

Algo que Martha is Dead prova não como um jogo redondinho – coisa que ele não é, de forma alguma – e sim ao insistir em uma sensibilidade semelhante com uma contundência até maior. Claro que, por ser um jogo indie italiano em vez de um novo título de uma publisher japonesa já famosa por outras franquias (Contra, Castlevania, Bomberman etc.), ele sai em desvantagem em termos de chances de grandes vendas. Ainda assim, as reações a ele às vezes são tristes, tristes de se ver. Como a capacidade de interpretação do jogador/jornalista médio conseguiu desabar tanto? Para entender isso, temos que começar do que Silent Hill é e como a série se desdobrou com o tempo…

A real extensão do declínio

Antes de mais nada, deixa eu dizer… não, pedir uma coisa a vocês. Vamos esquecer por um instante tudo aquilo que tenha a ver com finuras de sistemas de jogo, práticas da indústria, essas coisas que vão além ou mais a fundo do que o puro conceito geral de um jogo específico. Claro que elas são importantes, mas me acompanhem nesse exercício por enquanto.

Esqueçam que estamos falando da Konami, que a “equipe” japonesa responsável pela série foi dissolvida após o quarto jogo, que os estúdios ocidentais responsáveis pelos títulos posteriores não eram exatamente considerados de ponta, e assim por diante. Esqueçam que certas mudanças mecânicas podem ter sido meio polêmicas, como as armas “quebráveis” de The Room, a falta completa de combate em Shattered Memories, essas coisas todas. E, claro, esqueçam que Book of Memories e a Silent Hill HD Collection existiram; vamos pensar só nos jogos principais e em suas versões iniciais “puras”.

Sem toda essa bagagem mental entulhando o quarto das nossas memórias afetivas, eu pergunto: o que Silent Hill é?

“Terror psicológico”, OK, claro. Mas o que é isso exatamente? Ou melhor, o que torna Silent Hill único agora que o mar desse subgênero cobre basicamente qualquer jogo de terror que não se escore em jump scares, jogabilidade de combate fluida ou, em alguns casos, nem sequer o sobrenatural em si?

A resposta é que Silent Hill marcou porque fazia um uso extensivo e profundo de simbolismo narrativo, algo ainda incomum em jogos àquela altura. Por baixo de tudo que fez para mostrar como um mero jogo de PlayStation 1 “blocado” e pixelado poderia realmente enervar e assustar, Silent Hill ia fundo em temas universais e tão antigos quanto a humanidade, apresentando-os em forma de símbolos que podiam ser inferidos intuitivamente por quase qualquer um com um mínimo de capacidade para pensamento abstrato.

Mesmo que você enxergue a história do primeiro Silent Hill “apenas” como uma cidade maldita com capacidade sobrenatural de torturar certos habitantes/pessoas nela presentes, tudo graças a um culto bizarro que acreditava em magia antiga, ainda assim, lá no fundo, você também sabe que a história lhe afetou porque mexeu com outras coisas mais primais. Com noções de percepção da realidade, com as sensações e contradições de relações paternas e maternas, com a capacidade de indivíduos – não monstros, não fantasmas – de causarem um imenso mal a outrem usando as mais diversas e inacreditáveis desculpas.

Ainda que o sobrenatural realmente exista no mundo de Silent Hill, desde os poderes psíquicos de uma personagem inicial importante até o histórico da cidade como local antigo de poder para tribos indígenas, o que realmente marca na série é como todo o sobrenatural sempre leva a – ou pior, surgiu de – algo horrível concreto no mundo real retratado. Nesse “horrível” tem de tudo: abuso infantil, tortura física, estupro, assassinato em série, eutanásia, isolamento social autoimposto, suicídio, vingança à margem da justiça etc. etc. etc. Tenham isso em mente, já voltamos a essa parte.

Isso tudo sempre esteve claro para mim, mas nesse “remergulho” na série, eu andei assistindo a alguns vídeos de interpretação narrativa no YouTube quando uma lista em especial me abriu os olhos de vez sobre a “cola” real entre o lado sobrenatural e o lado psicológico. Quem tiver interesse, confiram com calma – são vários vídeos por jogo – o canal Reinstall Paul, em particular a lista de Segredos e Simbolismo do primeiro jogo. Só tenham paciência, particularmente no começo, porque a viagem vai longe e muitos, muitos conceitos aparentemente não relacionados precisam ser explicados com calma para chegar ao que realmente interessa.

Para os preguiçosos ou sem tempo, o resumo simplificado é que os Silent Hill iniciais se escoraram demais em alquimia e ocultismo, e não estou falando das versões cultura pop disso. Não se trata de cientista maluco tentando literalmente transformar chumbo em ouro ou algo assim, e sim de alquimia e ocultismo como expressões da busca por um entendimento mais elevado do universo e de um “eu maior”, a ponto de servirem de inspiração para psicólogos seminais como Carl Jung. É aí que está a ligação: o simbolismo de “transmutar metais básicos em metais mais valiosos” como metáfora de autoaprimoramento, de descartar as “impurezas” do seu eu para se tornar alguém melhor, mais equilibrado(a).

A série de vídeos demonstra como essa influência foi forte, com o primeiro jogo até usando as sete etapas básicas do processo alquímico como base para puzzles e para a progressão narrativa em ordem direta, de “chumbo” a “ouro” (e depois em reverso perto do final em Nowhere). E se você achar que é viagem, no próprio jogo os símbolos das etapas – quer dizer, os caracteres/desenhos associados historicamente a cada uma – são mostrados a Harry em certo momento nas fileiras de TVs no Town Center, também em ordem direta. Você sempre se perguntou o que eles significavam? Pois agora sabe.

Isso é importante porque simboliza parte do que a série “perdeu” com o tempo. Não foi só a dissolução do “Team Silent”: o terceiro e o quarto jogos com eles já não tentavam usar essa “cola alquímica” com a mesma ênfase, antes mesmo de estúdios ocidentais botarem as mãos na série. No entanto, o uso de simbolismo para reflexões psicológicas e estados mentais permaneceu constante, e aí tudo se torna uma questão de competência e conhecimento na hora de usar essa técnica.

É por isso que eu pedi para esquecerem das filigranas. Agora fica mais fácil entender por que, por exemplo, jogos posteriores como Origins e Shattered Memories foram melhor recebidos do que Homecoming e Downpour. Cada um desses dois primeiros casos tinha uma visão bem clara dos dois “lados” que compunham o primeiro jogo – o ocultista e o psicológico, respectivamente – enquanto os outros dois foram quase “macaqueações”, dioramas que imitavam diversos símbolos e conceitos anteriores sem saber de onde essas coisas realmente vieram ou o que representavam antes. Esse foi o verdadeiro declínio de Silent Hill: não as mudanças de jogabilidade, cenário, detalhes, e sim a perda de competência no uso consciente e profundo de simbolismos.

A neblina da era embrionária da internet

Isso tudo fica especialmente claro no caso de Downpour. Eu ainda gosto do jogo por conta de uma ideia que a equipe entendeu bem: usar um prisioneiro como narrador não confiável, emulando em parte o papel de James Sunderland em Silent Hill 2. Ao final de ambos os jogos, fica totalmente a cargo do jogador decidir o que ambos cometeram ou deixaram de cometer exatamente – e isso é sempre legal se for bem feito em histórias com cunho psicológico, de terror ou não.

O negócio é que, pra quase todos os efeitos, Downpour foi a tentativa mais descarada desde Origins de reproduzir o tipo de jogabilidade dos primeiros Silent Hill, só que com recursos tecnológicos-visuais contemporâneos à época… e mesmo assim foi parar no fundo da lista como um dos piores jogos da série. Eu lembro de ter ficado meio encafifado com isso porque era exatamente o que um monte de gente pedia na época e, quando receberam, acharam ruim do mesmo jeito.

Hoje eu entendo melhor o motivo principal dessa rejeição: a mencionada falta de compreensão mais profunda do que os melhores Silent Hill fizeram em termos de simbolismo e design. Talvez muita gente tenha captado isso intuitivamente em Downpour, assim como muito dos primeiros jogos foi (ainda é?) processado e admirado mais de forma inconsciente do que racional, pelo menos até você ficar intrigado(a) o bastante para pesquisar de onde todos aqueles símbolos e conceitos vieram. Mas agora eu acho também que não foi isso, que o problema estava já na ideia meio tosca de só querer “um jogo como os primeiros, só que mais bonito graficamente”.

Eu comecei a entender isso ao reiniciar Silent Hill 3. É o seguinte: vamos fazer o mesmo exercício mental de novo, só que na direção contrária – isto é, esquecer por um instante da jornada narrativa-simbólica de Heather e nos concentrar na parte mecânica, sistêmica, de desenvolvimento de jogo. Na real, o terceiro já está um degrau visível abaixo dos dois anteriores em alguns desses pontos, em particular no design de mapas das primeiras partes, enquanto melhora bastante outras coisas.

O shopping, os esgotos e o prédio de escritórios no início da jornada de Heather são todos maiores e/ou mais complexos… Só que de formas um pouco redundantes e, ao mesmo tempo, contendo andares e pedaços enormes inteiros que nem sequer são usados. Em comparação, mapas emblemáticos dos dois primeiros jogos, como o hospital, a escola, a prisão de Toluca ou o hotel Lakeview são todos usados por completo de forma magistral, cada um a seu tempo e com “respiros” entre eles, sejam narrativos ou de exploração da cidade “aberta” em si.

Esse sexto andar não é usado para nada

Silent Hill 3 emenda todos os três mapas citados e um canteiro de obras de uma vez só, um atrás do outro, sem respiro e sem praticamente nada de exposição narrativa até Heather finalmente chegar em casa e ir para Silent Hill. Isso atrapalha um tanto o ritmo inicial da história, diminuindo o impacto de cada lugar e deixando tudo com mais cara de “jogo padrão” do que antes, tanto para o bem quanto para o mal – algo reforçado pela boa evolução do combate e dos inimigos. O terceiro jogo é sem dúvida mais estratégico nesse lado, tanto pelas diferenças mais pronunciadas de cada arma quanto pelo comportamento mais diverso e menos previsível da I.A. dos monstros.

O negócio é que, se Silent Hill 3 como jogo já não era mais tão bem “fechadinho” em design e sua história era essencialmente uma expansão do que já havia sido revelado no primeiro título, por que o jogo ainda persiste como um clássico da série? Pior ainda: por que Origins, que é basicamente outra expansão da mesma trama sem nenhuma evolução significativa de jogabilidade como Silent Hill 3 teve, também não foi tão desconsiderado quanto outros jogos ocidentais posteriores ou até mesmo The Room?

Assistindo a outro canal de análise da série, dessa vez o thegamingmuse, outra ficha caiu pra mim, em especial pelas informações de “resgate histórico” sobre o desenvolvimento dos jogos. Vejam, os primeiros foram criados ainda nos primórdios da Internet, enquanto os posteriores vieram em um ambiente com fóruns e ferramentas de discussão e expressão online já mais estabelecidos. Isso quer dizer que algumas coisas consideradas “senso comum” sobre o desenvolvimento dos primeiros jogos na verdade estão incorretas, envoltas em uma neblina (pun intented) de desinformação e compreensão equivocada.

Os dois mitos mais prevalentes que precisam ser desvelados são (a) a suposta existência de um “Team Silent” e (b) a ideia de que The Room começou como outro jogo e depois foi “convertido em um Silent Hill“. Para começar, na verdade, nunca existiu um “Team Silent” fechado, e sim um departamento interno que se dividiu constantemente em equipes diferentes para cada um dos quatro primeiros jogos. Entenderam agora porque estou sempre usando aspas em “Team”? Para se ter uma ideia, a porcentagem de pessoas envolvidas no segundo Silent Hill que vieram do primeiro jogo mal chega a 20% (sim, só vinte por cento) – e não foi diferente depois no terceiro e no quarto.

Isso é importante porque demonstra que, mesmo nessa época, não havia uma visão tão unificada ou fechada assim dentro da Konami sobre o que Silent Hill “deveria” ser. O que eles tinham era um conjunto de conceitos e temas a serem revisitados sob outros prismas e pontos de vista, sempre usando simbolismo em vez de narrativa direta ou “pé-no-chão”. Cada jogo principal dos quatro teve um diretor e um roteirista diferente justamente por isso. Em outras palavras, a série sempre foi vista internamente como uma espécie de Final Fantasy com novos protagonistas e histórias a cada jogo, só que em torno de uma mesma cidade – e uma que nem sempre precisava ser exatamente a mesma, embora alguns jogos tenham partido da Silent Hill inicial.

O outro mito (b) é crucial porque sublinha tudo isso ainda mais e marca o “ponto zero” em que a base geral de fãs começou a perder o entendimento coletivo do que Silent Hill era – e, acreditem se quiserem, foi já no hoje celebradíssimo Silent Hill 2. Calma, eu explico. O que esse canal no YouTube descobriu fuçando sobre as reações ao jogo nos primórdios da internet japonesa foi que, na verdade, houve uma parcela de fãs vocais no país que reclamou do jogo não continuar de onde o primeiro parou com Harry e Cheryl.

Isso sozinho não é garantia de nada, mas, em conjunto com outro detalhe mais concreto, demonstra por que os dois jogos seguintes foram desenvolvidos de uma maneira peculiar. O detalhe é que Silent Hill 2, na verdade, vendeu menos do que o primeiro, mesmo custando mais para fazer, saindo em mais plataformas e sendo mais sofisticado como jogo. Isso obviamente gerou uma pressão orçamentária para o que viesse depois, e o departamento responsável pela série acabou reorganizando duas equipes para seguir nas duas direções opostas: uma retomando a história inicial, a outra indo ainda mais fundo na ideia de que cada jogo poderia ser uma experiência bem diferente.

Sim, isso quer dizer que Silent Hill 3 e Silent Hill 4: The Room foram concebidos e desenvolvidos concomitantemente. Talvez seja daí, em meio a poucas fontes de consulta e traduções malfeitas, que o mito de The Room como “jogo à parte” tenha nascido. Afinal, quantas vezes na história dos games tivemos o mesmo “estúdio” – no caso, mesmo departamento interno – se dividindo para fazer dois jogos da mesma série ao mesmo tempo com abordagens completamente opostas? O natural é imaginar que a segunda equipe faça no mínimo um spin-off, quando não uma franquia nova.

O mais interessante para nós agora nem é saber que The Room, na verdade, sempre foi um Silent Hill desde o começo, e sim o motivo desse “split” tão inusitado. Ele demonstra que, desde muito cedo, a natureza do que Silent Hill é – ou era para ser, mas nem sempre foi – nunca foi totalmente compreendida pelos ditos “fãs de carteirinha das antigas”. Sempre existiu gente que se prendeu demais a Harry como personagem, à cidade de Silent Hill exatamente como retratada no primeiro jogo, a uma visão mais literal da importância do culto, em vez de enxergar tudo isso como os veículos naquela história para os conceitos alquímico-psicológicos que seriam reinterpretados de outras formas do segundo jogo em diante.

E aí fica claro por que Silent Hill 3 e Origins são mais aceitos do que os outros posteriores. O instinto natural é culpar a nostalgia, o retorno à mesma trama inicial central de Harry e Cheryl, mas isso não explica a fama posterior de Silent Hill 2, hoje visto como o melhor da série por muita gente (eu incluso). O que explica é enxergar essa “nostalgia” como uma reação instintiva ao forte uso de simbolismo e à cidade de Silent Hill em si. Com o tempo, o segundo jogo “venceu” a resistência inicial porque era simplesmente sólido e fora de série na parte narrativa-simbólica, mesmo com uma história separada, e porque ainda a baseou na mesma Silent Hill de antes.

Vendo as coisas assim, podemos entender, por exemplo, por que The Room foi mais polêmico – há quem ame, há quem odeie – do que Silent Hill 3, embora ambos os jogos passem uma boa parte do tempo fora de Silent Hill. No terceiro jogo, isso espantou menos os fãs mais “literais”, menos capazes de pensamento abstrato, porque (1) a base de jogabilidade ainda era mais ou menos a mesma e (2) a história eventualmente retornava à cidade de Silent Hill que eles conheciam. Já o quarto ousa mais no quesito (1) e praticamente abandona o (2), tratando “Silent Hill” não como uma cidade específica e sim como o conceito geral de “outra dimensão sobreposta que manifesta conflitos psicológicos internos do indivíduo”.

É aí que a decisão da Konami de dissolver o departamento e repassar o desenvolvimento da série a estúdios externos se mostrou muito mais desastrosa do que eu inicialmente acreditava. Esqueçam que esses estúdios eram ocidentais, se eram bons ou não, ou o quanto entendiam ou deixavam de entender dos primeiros jogos… O maior problema real é que os criadores originais nunca tiveram a oportunidade de consolidar o que iniciaram para valer com The Room, de demonstrar que a série nunca foi concebida para ficar presa a coisas como neblina constante, um culto religioso bizarro, Cheryl/Alessa, o passado de uma Silent Hill específica e assim por diante.

Marta is Dead e a (quase) morte do pensamento abstrato

É nesse ponto que finalmente (ufa!) vamos chegar a Martha is Dead e por que esse jogo de 2022 me marcou tanto. Eu sempre brinquei que Silent Hill, pra mim, era como pizza: até quando é ruim é bom. Melhor dizendo, quando você está com vontade de comer pizza, até uma “marromeno” vai matar bem a secura. A maior prova disso é que eu já reinstalei e vou rejogar Homecoming e Downpour nessa maratona toda sim, e posso explicar isso de outra forma: mesmo que eles não entendam muito bem o simbolismo dos outros Silent Hill (muito) melhores, ainda são jogos que se escoram muito mais no simbólico do que no literal, além de na ideia maior de “Silent Hill” como “dimensão da punição psicológica” em vez da mesma exata cidade onde Harry, James e outros viveram suas jornadas individuais.

Isso representa uma segunda perda ao longo do tempo, depois da primeira causada pela dissolução do “Team” Silent… ops, o departamento Silent. Se você prestar atenção, as equipes ocidentais – ou, pelo menos, os produtores na Konami que passaram a orientar a série – na verdade entenderam uma coisa melhor sobre Silent Hill do que muitos dos próprios fãs doentes: cada jogo deveria ser separado em vez de repisar demais os mesmos exatos terrenos iniciais.

Ainda tivemos Origins logo depois, claro, mas isso foi o Climax Studios se familiarizando com a base da coisa toda antes de botar a série de volta nos trilhos mais ousados e variados, como demonstraram muitíssimo bem em Shattered Memories – ironicamente, uma reinterpretação bem “solta” do próprio primeiro jogo que incorporava ideias iniciais para um spin-off, chamado Brahms P.D., e de um pitch para um jogo inédito que nunca se materializaram. Se Homecoming e Downpour não conseguiram um resultado tão bom, é outra questão, que na real nada tem a ver com o quanto esses jogos são “fiéis aos originais” ou deixam de ser.

O problema é que, sem o mítico (e, hoje sabemos, meio irreal) “Team Silent” no comando, ficou fácil para esses mesmos fãs projetarem a própria falta de compreensão da natureza “mutante” e simbólica de Silent Hill em figuras externas. Chega até a ser irônico e triste: é como se esses fãs estivessem eles mesmos presos até hoje na neblina e no Otherworld de Silent Hill (a cidade inicial), incapazes de superar os próprios demônios internos e escapar dali. O chato é que eles acabaram inspirando a geração de jornalistas e críticos menos capazes que veio depois e “viralizou” a tal segunda perda: cada vez menos gente consegue enxergar de forma abstrata esse tipo de jogo mais.

Eu poderia especular sobre vários motivos aqui. Já falei da dissolução do Departamento Silent na hora mais errada, quando mais começavam a ousar de novo, e também da consolidação do “discurso online” na Internet, mas não é só. Também ficamos, no geral, mais imediatistas, mais sedentos por gratificação instantânea. Cada vez mais jogadores querem ter um mínimo de explicação clara e “pé-no-chão” sobre qualquer coisa representada, e cada vez mais deles forem educados em um ambiente onde metáforas e simbolismos são ou “inúteis” para a vida moderna, ou relíquias de tempos “obscurantistas” que nossa civilização “já superou” – a despeito de cada vez mais dessas pessoas fazerem terapia baseada justamente em vários desses conceitos simbólicos ancestrais.

Estamos também num tempo em que autores clássicos não são mais estudados nas faculdades de humanas por uma série de motivos totalmente dissociados ao mérito de suas obras: “há autores caucasianos demais” e “precisamos de outras vozes”, eles “já foram estudados demais”, eles “não refletem mais a realidade moderna”. Essa é outra camada da baixa competência geral dos nossos jornalistas e roteiristas atuais: estes são, muitas vezes, ainda menos capazes de pensamento abstrato do que os fãs “presos na cidade de Silent Hill”. É por isso que toda história moderna ocidental sobre, digamos, “ciclo de vingança” tem que começar, correr e terminar com uma vingança literal e violenta atrás da outra, sem espaço para representações simbólicas ou metafóricas da ideia para enriquecer a narrativa.

Martha is Dead entra aqui porque é uma exceção cada vez mais rara à essa regra “literalista”. Quase tudo no jogo é simbólico, a ponto de praticamente todos os pedaços da narrativa serem questionáveis, no sentido de terem acontecido realmente conforme exibidos ou não. Isso rola em parte pela volta do recurso já mencionado de narrador não confiável, mas também por design intencional, tanto narrativo quanto visual e mecânico. E não é de uma forma simplista linha “será que tudo não passou de um sonho?”, e sim a partir de uma perspectiva psicológica sólida e não-julgadora, que dissocia traumas pessoais de conceitos muito fáceis de “certo” ou “errado”. A questão é mais se a protagonista entende e aceita/supera seus próprios demônios ou não, e como vai fazer isso… Exatamente como nas melhores histórias do tipo.

Antes de continuarmos, me deixem abrir um parêntese. Eu ia sugerir o mesmo exercício geral de esquecermos a parte “jogo”, mas Martha is Dead é recente, menos conhecido e com problemas que os clássicos não têm, então vou mencioná-los desde já. Entendam que é um jogo indie, que é meio pesado no PC e não roda muito bem, que ainda tem bugs e sequências que podem ser “quebradas” se você fizer certas coisas nas horas erradas, que nem todos os controles são bons e assim por diante (dirigir a bicicleta em especial é terrível, e eu recomendo só usá-la na missão em que isso é um dos objetivos explícitos). Nem todos os diálogos são tão bem escritos quando analisados isoladamente, o ritmo inicial é um pouco arrastado, e eu achei a dublagem original (em italiano) meio monótona e sem emoção demais.

Em outras palavras, ele não chega aos pés de um bom Silent Hill, não. Mas, sinceramente, nada disso importa pelo que o jogo representa em termos de resgate do bom uso de simbolismo e pensamento abstrato. Para que possam entender melhor, o jogo retrata a vida de uma jovem italiana no meio da Segunda Guerra lidando com a morte repentina da titular Martha, sua gêmea. O pai é um oficial alemão – e, portanto, nazista – na Toscana ocupada, enquanto a mãe é uma italiana de nascença. Nenhum desses detalhes de premissa narrativa existe no vácuo, abrindo terreno para muitos assuntos complicados – desde os horrores e paranoias de guerra até um possível preconceito com mestiçagem, ainda mais em plena era hitleriana.

Também é um alerta vermelho de “problema” na cabeça do povo “literalista” que falei, seja jornalista, fã ou YouTuber. Para eles, se a história tem nazismo, então ela precisa condená-lo categoricamente e expressamente – de forma simbólica, temática e/ou trágica não basta. Sem entrar em spoilers, para essa gente é inconcebível, por exemplo, que a protagonista tenha qualquer simpatia pelo próprio pai, mesmo que a história se concentre mais em outros temas e apresente uma explicação bem clara para a filha fazer essa dissociação – além do fato de ser o pai dela, pô. O que importa para essas pessoas é que ele integra o exército nazista e, assim, teria que ser retratado como o Satã em pessoa, quer isso tenha a ver com a trama ou não, quer o pai seja sequer um personagem tão importante assim ou não (a mãe é muito mais).

Justamente por não tratarem a história com essa superficialidade “literalista”, os criadores do jogo acabam mexendo em outras feridas pós-modernas meio sem querer. Lembrem-se, eles são italianos, com um referências culturais distintas das anglo-americanas – inclusive no cinema. Uma das coisas que mais me chamou a atenção em Martha is Dead foi como certas cenas são claramente inspiradas em filmes mais alegóricos e surrealistas europeus, mais “perturbadores” em termos visuais. Em uma era onde quase todo jogo narrativo blockbuster quer parecer série do Netflix ou da HBO, é bem inspirador ver, digamos, uma cena sobre “roubo de identidade” ser retratada com a retirada sangrenta de um rosto humano com música ultradissonante ao fundo – quase uma cena de uma obra do Buñuel ou algo do tipo.

Obviamente, algo forte assim pode caber perfeitamente em uma história de terror, ainda mais uma psicológica e simbólica. Também bate muito bem com o terror japonês de Silent Hill, que nunca fugiu de assuntos complicadíssimos em representações perturbadoras – vide Pyramid Head “carcando” monstros-manequins femininos à força como simbolismo da frustração sexual de James no segundo jogo. Na época, quase todo mundo entendeu a metáfora de um jeito ou de outro; ninguém tratou a cena – que, ainda por cima, era uma referência ao filme Veludo Azul de David Lynch – como uma “apologia ao estupro”. Só que estamos em 2022, e aí falta a esse povo todas as referências que lhe foram roubadas ou negadas pelo imediatismo pós-moderno e outros “ismos” vazios. Seja Lynch, cinema europeu, o conceito de id/ego/superego e suas manifestações em sonhos e pesadelos, e assim por diante.

Se vocês viram que Martha is Dead foi censurado no PlayStation e/ou algumas discussões sobre o uso de interatividade em cenas perturbadoras, agora já sabem o porquê. É claro que parte dessa gente interpretou essas cenas como “apologias” a coisas condenáveis apenas “para chocar”, ou como “vilanização de problemas psicológicos”. Depois de jogar tudo, eu garanto a vocês: nada do que há de mais perturbador em Martha is Dead é gratuito e não chega nem a ir mais longe do que Silent Hill já fez. Mesmo que em uma ou duas cenas você controle o ato, isso é natural para essa história porque, ao contrário do caso de Harry, James e companhia, as representações simbólicas acontecem diretamente com a protagonista, não como projeções externas em outra dimensão mezzo sobrenatural. Em outras palavras, aqui não há um Pyramid Head, um Otherworld invasivo ou monstros formados pelo inconsciente de uma menina com poderes psicocinéticos.

O que é uma mulher de 21 anos que tem que lidar com a morte da gêmea em uma época e lugar bem inusitados para jogos, o interior italiano dos anos 40 durante uma guerra, em que nada das circunstâncias ajudava a superar qualquer trauma relacionado a um caso desses. Mais do que isso eu não posso dizer – primeiro por ser mais simbólico do que parece desde muito cedo, segundo pela narrativa ser construída com ampla margem para interpretações. Muitos detalhes e reviravoltas são oferecidos na superfície, mas quase nenhum deles pode ser aceito integralmente sem reservas – não por serem necessariamente sonhos ou o sobrenatural, e sim pela própria natureza imperfeita das memórias sob trauma extremo.

Um bom exemplo não-spoiler disso é como o jogo trata finais – ou, melhor dizendo, a falta de finais distintos no sentido tradicional, como em Silent Hill. Martha is Dead não baseia a cena derradeira de acordo com suas ações ou escolhas, a cena é fixa. O que o jogo faz é, pouco antes disso, dar uma oportunidade a você de “dizer” o que aconteceu em alguns dos detalhes mais importantes da jornada. Ele traz para “dentro” do jogo a sua própria “conversa” interna, a sua própria interpretação dos eventos, e deixa espaço para que tudo tenha sido como você imaginou que foi.

É um jeito curioso e esperto de “driblar” as limitações de uma equipe de desenvolvimento pequena – cerca de dez pessoas, pelo que eu li – que já fez muito mais do que se esperaria em outros campos. Além da história ser bem complexa, a recriação histórica, o nível gráfico e a direção de arte são nível AAA (bugs e desempenho à parte). Além disso, a jogabilidade é mais variada do que se esperaria de um jogo essencialmente narrativo em primeira pessoa. Nesse lado ele lembra um pouco What Remains of Edith Finch no que o jogo faz para não ficar só no “clica nesse item e depois no outro” – em especial na simulação de fotografia com máquina e filme antigos, além de usos como o do telégrafo, em que decodificar código morse vira um puzzle digno de jogos de terror clássicos.

O jogo é daqueles em que você pode até achar um caminhão de defeitos pequenos, mas ainda assim pode ficar bem feliz com a experiência pelo que ela representa. Não faltam jogos indie tentando preencher o espaço que Silent Hill ou outros jogos clássicos hoje “dormentes” deixaram, mas poucos conseguem entender tão bem a importância do simbolismo e de uma certa “distância” narrativa que não se preocupa em “passar mensagem”, “dar visibilidade” a um assunto da moda ou fazer julgamentos morais “duros” e impassíveis. Uma que deixa a natureza perturbadora intrínseca de certos temas fluir sozinha de uma forma que enriquece histórias de terror em especial. Uma que lembra que o mais assustador não é aquilo que você vê com seus olhos, é o que você acha que viu no seu inconsciente.

Nesse sentido, eu me preocupo com um possível novo Silent Hill. Eu acho até que, se o segundo jogo só tivesse sido feito hoje, 23 anos depois do primeiro, com a mesma exata narrativa, ia acabar recebendo os mesmos tipos de críticas incrivelmente superficiais que Martha is Dead sofreu, ainda que tivesse jogabilidade e fidelidade gráfica modernas. O pessoal de hoje não ia “herdar” o entendimento mais profundo que a história teve há 20 anos, e sim só enxergar as frustações masculinas de James, fetichizar os braços sarados do Pyramid Head em contextos sadomasô (vide Lady Dimitrescu) e reclamar de Maria usar roupa curta e sensual.

Nada de entender as complexidades sutis da relação de James com Mary que só ficam claras no final, a dificuldade gigantesca de conviver por anos com uma pessoa amada com doença terminal, entender que Pyramid está lá justamente para guiar James a melhorar deixando suas frustrações sexuais inconscientes para trás, que Angela e Eddie são reflexos de James de um jeito ou de outro… Entre vários outros detalhes maiores e menores de uma das histórias mais complexas, bonitas, instigantes e simbólicas dos videogames.

Quando o próximo Silent Hill vier, ele quase certamente não chegará usando a mesma cidade, um(a) protagonista anterior, a neblina, o Otherworld cheio de grades enferrujadas, símbolos de ocultismo antigo, poderes psíquicos, um buraco na parede do banheiro que leva à outra dimensão, um monte de gelo que cobre a cidade de repente enquanto você foge por labirintos… Em resumo, nada da superfície visual e narrativa dos jogos anteriores, e talvez nem muito da mesma jogabilidade.

A grande questão é… Será que seremos maduros o suficiente para ver além da superfície, para enxergar e analisar adequadamente o mesmo tipo de simbolismo ali, examinar se ele consegue abordar de forma inteligente os mesmos tipos de temas usando imaginário e ideias de jogo possivelmente bem diferentes? Será que o jogo vai precisar se abster um pouco de certos temas só para não “chocar”, ou usar temas menos “polêmicos” e mais modernos em seus simbolismos sobre trauma e culpa pessoais? Só o tempo vai dizer. Enquanto isso, para nós que o Twitter, o ResetEra e as faculdades modernas não emburreceram de vez, há Martha is Dead. Já é alguma coisa, um sopro de esperança.

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