Forza, “acessibilidade” e vergonha alheia

Ontem tivemos a edição anual do The Game Awards, o “Oscar dos games”, que foi surpreendentemente divertida de assistir – sem dúvida uma das melhores versões do evento desde que ele começou em 2014, das cinzas do (muito pior) Video Game Awards anterior, organizado e apresentado pelo finado canal de TV Spike.

Porém, não resolvi vir escrever aqui por causa da expressiva (e merecida, da minha parte) dominação de Baldur’s Gate III, pela surpresa de ver Alan Wake II ganhar três dos maiores prêmios (Direção de Arte, Direção de Jogo e Narrativa), ou mesmo pelos diversos anúncios empolgantes, que foram desde um novo jogo de terror do Kojima, OD, até Monster Hunter Wilds e a SEGA confirmando o desenvolvimento de novas versões modernas para nada menos que cinco franquias clássicas dela (Jet Set Radio, Shinobi, Crazy Taxi, Golden Axe e Streets of Rage).

Isso tudo será bem melhor coberto e comentado em diversos sites, blogs e canais de YouTube por aí. Não, o que eu quero destacar é algo que talvez o público mainstream não perceba: como a imprensa de videogames protagonizou uma vergonha alheia xigante ao premiar Forza Motorsport – o “reboot” de 2023 – em duas categorias às quais talvez não devesse nem ser indicado, muito menos vencer.

Parênteses: opinião é uma coisa, falta de senso é outra

Eu sei, eu sei. Opinião é que nem cartão de crédito, cada um tem o seu etc. etc. etc. E, falando nisso, eu até acho que, no geral, as escolhas dos premiados foram muito boas nesta edição do evento. Mas algumas coisas podem ser contestadas em um nível mais objetivo – ou no mínimo menos subjetivo do que o usual quando se trata de comparar o incomparável, ou seja, obras completamente diferentes para saber qual é “a melhor” nisso ou naquilo.

Antes de qualquer coisa, um pouco de contexto para quem não estiver ligado. A votação do The Game Awards (TGA) funciona em um esquema de média ponderada em que a imprensa tem 90% do peso com seus votos enquanto o público tem apenas 10%. Por “a imprensa”, entenda-se mais de 100 veículos do mundo inteiro (incluindo 8 brasileiros). Isso quer dizer que, se um jogo vence uma categoria, 90% da “culpa” é da imprensa, pro bem e pro mal.

E aí é que entra uma constatação simples: uma coisa é uma votação popular se deixar levar demais por fatores superficiais como gráficos de ponta, renome de franquia, fanatismo por uma plataforma ou o que mais for… Mas da imprensa espera-se mais. E o curioso é que, desde que o TGA expandiu seu júri para outros países além dos EUA e do Reino Unido, de fato as escolhas têm sido menos previsíveis, menos “concurso de popularidade”. Pô, Hi-Fi Rush venceu nada menos que Dead Space, Resident Evil IV e Spider-Man 2 em Design de Áudio. Nos primeiros TGA, isso seria impensável, por melhor que o jogo seja nisso (e em vários outros fatores, diga-se).

Porém, contudo, entretanto, todavia… Essa imprensa global ainda tem alguns “buracos” de entendimento e noção típicos de público mainstream médio, e um deles diz respeito a jogos de alguns gêneros hoje menos populares do que em certas épocas passadas, como luta, esportes e corrida. Não apenas eles (quase) nunca são indicados a prêmios maiores, quanto a cada ano esses veículos de mídia demonstram conhecer muito pouco deles, a ponto de passarem informações erradas constantemente sobre tais jogos ou falhar em avaliar recursos básicos que se espera nesses gêneros. E o que aconteceu com Forza Motorsport talvez tenha sido o melhor exemplo disso em anos.

Expectativas de jogos de corrida traídas

Já foi meio esquisito ver Forza Motorsport ser indicado na categoria Esportes/Corrida, mas vá lá. É uma franquia de renome e o reboot tem seus pontos fortes, como o manuseio dos carros, o design de áudio e, para quem gosta, o multijogador, que finalmente incorporou recursos aclamados de concorrentes como Gran Turismo ou iRacing. No entanto, mesmo assim o jogo foi considerado uma grande decepção pela comunidade de fãs de corrida em geral, ainda mais depois de seis anos de espera por uma nova edição “desenvolvida do zero” (“built from the ground up”).

Se alguém duvida dessa generalização, achando que foi apenas uma minoria vocal… Entenda que essas aspas são porque a expressão foi usada ad nauseam no marketing do jogo apenas para virar um grande meme após o lançamento. Não foi à toa: descobriram até que vários modelos de carros são os mesmos desde os Forza Motorsport da era… Xbox 360. Com texturas novas, claro, mas os mesmos modelos – alguns deles meio imprecisos em comparação com os carros reais. Além disso, o jogo tem indubitavelmente o modo Carreira mais sem graça e personalidade de toda a franquia, algo que nem as resenhas da grande imprensa negaram, e o novo sistema de upgrades foi amplamente criticado – mais sobre isso adiante. Sem contar bugs, crashes no PC, problemas com volantes de marcas populares… E por aí vai.

Eu aposto que, se houvesse uma categoria Corrida (sem Esportes) e ela fosse entregue a sites e veículos especializados no gênero, Forza Motorsport correria o risco de nem ser indicado, perdendo para jogos melhores como The Crew Motorfest, EA Sports WRC, F1 23, Hot Wheels Unleashed 2 e Lego 2K Drive – isso só de cabeça, deve ter mais. Mas não precisamos nos estender sobre a reação do público e de especialistas ao jogo, porque o júri do TGA sacramentou seu total desconhecimento do estado real de Forza Motorsport ao premiá-lo de novo em uma categoria muito, muito pior para o jogo.

Acessibilidade não é facilidade

O reboot de Forza realmente tem recursos bem interessantes para pessoas com deficiências, como uma lista enorme de assistências de áudio para quem tem problemas de visão e assim por diante. O problema é que, como sempre, parte da imprensa insiste em confundir “acessibilidade” com “facilidades [gerais]”, encantada com as boas intenções óbvias do tema sem perceber que pessoas com deficiência não querem que o jogo chegue ao ponto de “se jogar sozinho” para elas.

Só algumas das assistências de áudio, nem cabe tudo na tela

É só procurar no YouTube e afins que você vai ver: com acesso a controles sob medida/customizáveis e compensações in-game para suas deficiências específicas, essas pessoas muito provavelmente conseguem dar um pau e tanto nas suas e nas minhas habilidades em diversos gêneros – até mesmo em jogos notoriamente difíceis como os Souls. O que elas não precisam é serem tratadas como café-com-leite, o que na verdade só aumenta a sensação de “não pertencimento” que a preocupação real com acessibilidade busca eliminar.

Nesse sentido, Forza Motorsport não poderia ter vencido tal categoria em pior hora. Nas últimas semanas, a comunidade de corrida tem publicado e divulgado uma série de vídeos sobre um “recurso” espantoso do jogo: as assistências de direção incluem basicamente uma forma de direção automática completa. Isto é, com tudo ativado, seu carro pode disputar uma corrida inteira sozinho sem você sequer tocar no controle – e pior, até mesmo em corridas online contra outras pessoas.

É claro que esse recurso diminui suas chances de vitória ou de pódio a quase zero, já que a I.A. do jogo dirige de forma bem conservadora nesse caso – sempre seguindo os traçados ideais predefinidos à risca, freando muito antes do necessário para evitar ao máximo batidas ou saídas de pista, e assim por diante. O que, se for pensar bem, já é meio caminho andado para fazer a pessoa se sentir café-com-leite… Mas isso também introduz problemas mais amplos, que vão além da acessibilidade, quando se considera outros dois recursos novos do jogo, um aclamado e outro polêmico.

“Boas intenções” bagunçando o fundamental

Esse novo Forza mudou completamente o sistema de progressão usado em jogos anteriores. Agora, você precisa subir cada carro individualmente de nível, à parte do seu nível geral como piloto. Sem fazer isso, você não tem acesso a peças de tunagem – o que significa que é preciso jogar pelo menos de 2 a 3 horas com aquele carro para poder finalmente tuná-lo à vontade, e depois repetir o processo com cada novo carro. Em jogos anteriores, e em basicamente todo jogo de corrida existente, as peças ou estão disponíveis de cara, exigindo apenas que você acumule dinheiro para pagá-las, ou são desbloqueadas progressivamente com o seu nível geral de piloto, na base “quando você melhora, peças melhores ficam disponíveis”.

Goste você desse novo sistema ou não, o fato é que ele força um grind muito maior que o normal em qualquer outro jogo de corrida. O que isso tem a ver com o assunto? Bom, é que assim que a direção automática completa foi “descoberta” por jogadores em geral, logo passou a ser usada para fazer esse grind sem participação real do jogador. Pessoas começaram a deixar Forza rodando sozinho para subir o nível de carros individuais sem realmente jogar. Note que o sistema de nível de carro não leva tanto em conta a sua posição final na corrida, e sim se você dirige “direito”… Ou seja, casa perfeitamente com o que a I.A. do jogo faz. Não bater, fazer boas curvas e terminar a corrida de forma limpa já vai dar EXP de carro o bastante para essa prática valer a pena.

Mas beleza… Isso seria em tese só na Carreira/modo solo, certo? Quem se importa se outras pessoas estão contornando um sistema de nível de carro polêmico usando um recurso de “acessibilidade”? Sozinho(a), cada um faz o que quiser… Não, não. Lembrem-se, o recurso também pode ser usado no multijogador – e aí logo descobriram que ele ajuda também a minar bastante aquela que deveria ter sido uma das melhores adições a este Forza.

Lembram quando eu falei que o jogo implementou recursos de Gran Turismo e iRacing? O principal deles é a Safety Rating (SR), ou Classificação de Segurança, que avalia como você dirige – solo ou online – para graduar seu respeito às regras da corrida e aos outros pilotos. Quanto mais você dirige “sujo”, menor será sua SR, o que impedirá que você seja pareado(a) com jogadores de SR mais alto, geralmente melhores pilotos. A medida existe para evitar, por exemplo, que jogadores online abusem do velho “bate-e-corre”, em que tocar de leve no carro à frente o desestabiliza e permite ultrapassar mais facilmente, às vezes “na marra” mesmo.

Pois então… Jogadores que abusam dos “truques sujos” – ou simplesmente são ruins mesmo – estão usando a direção automática completa em corridas online para subir sua SR baixa e, assim, serem pareados de novo contra quem realmente tenta correr de forma limpa e justa. Mais uma vez, a forma como a SR foi bolada “sinergiza” bem demais com a I.A.: o sistema de classificação não leva em conta sua posição final, apenas se você evitou bater, sair da pista, cortar caminho etc. O recurso de direção automática completa, assim, virou basicamente um cheat online.

Em resumo: em nome da “acessibilidade” (aspas necessárias nesse caso), implementaram um recurso que (1) trata as pessoas com deficiência como jogadores piores por padrão, (2) escancara ainda mais os problemas óbvios da nova progressão de EXP por carro, e (3) desmantela quase completamente um dos melhores recursos de pareamento de corrida dos últimos anos, adotado pelos melhores jogos de simulação atuais no mercado.

E esse é o jogo que vence a categoria Acessibilidade? Não dá. Simplesmente não dá.

Eu entendo que é uma pena descartar os outros ótimos recursos reais de acessibilidade por conta de um ou dois que passaram (e feio) do limite. O problema é que, quando esses um ou dois estragam partes centrais da experiência em geral para todo mundo, sejam pessoas com deficiência ou não… Fica difícil defender. Pior ainda quando basicamente todos os outros candidatos na categoria também foram ótimos sem incluir nada que causasse um estrago tão grande em seus fundamentos de design.

O imediatismo estraga tudo mais uma vez

Por que a imprensa de jogos deixou tudo isso passar? Por causa de outro problema maior de como resenhas funcionam, amplamente debatido há anos e que mereceria um artigo à parte. Pela própria natureza, a imprensa de games é bastante imediatista; ela recebe o jogo pra resenhar, termina-o o mais rápido possível para ter a análise pronta no lançamento e então corre direto para o próximo jogo. Esse “sistema” é alimentado por nós mesmos, desesperados que somos para comprar certos jogos assim que saem, e leva a uma série de casos problemáticos, em que a obra demanda um olhar bem mais cuidadoso ao longo do tempo.

Não há solução simples para isso, mas o problema aqui é que estamos falando do TGA, que aconteceu quase dois meses após o lançamento de Forza Motorsport. Uma coisa são as resenhas iniciais não perceberem todos os problemas potenciais acima mencionados, que mesmo a comunidade precisou de alguns dias/semanas para diagnosticar. Outra coisa, bem diferente, é a imprensa ainda insistir em premiar esse jogo meses depois. Não precisava nem ter continuado jogando por conta própria nesse meio tempo para evitar isso, e sim apenas acompanhar a reação do público de corrida, ou pelo menos de sites especializados.

Em tese, veículos generalistas da imprensa de games têm jornalistas com mais estofo neste ou naquele gênero. Resenhas de jogos como Forza não costumam ser entregues a qualquer um, e sim a pessoas que pelo menos gostam bastante de corrida. Como jornalistas, é parte da obrigação dessas pessoas acompanhar um pouco que seja como as coisas andam no gênero… E os problemas que mencionei acima foram abordados em basicamente todo lugar especializado, sem falta. Não são casos de nicho como os problemas com o volante da marca X.

Não é admissível que resenhistas de Forza deixem de saber de tudo isso. A sensação é parecida com ver jornalistas de política internacional declararem que não estão acompanhando o conflito atual entre Israel e Hamas, ou jornalistas esportivos daqui não comentarem a derrocada bizarra do Botafogo no Brasileirão de 2023 (que foi até assunto internacional – podem pesquisar por aí).

Tudo isso é uma pena. Uma mancha no ótimo TGA deste ano – uma, admita-se, que não cai na conta dos organizadores do evento em si. Talvez sirva de lição para o futuro, quando o evento poderia passar a entregar as categorias de gênero de jogo a sites especializados em luta, corrida etc., como já faz com os prêmios de e-sports. Enquanto isso não acontece, apenas lembrem-se: de boas intenções o paddock está cheio, então não “comprem” essas boas intenções pelas aparências apenas.

Deixe um comentário